A cidade

Bhainá
3 min readJun 28, 2019
Medianeras (2011) dir. Gustavo Taretto

Mês passado ouvi um podcast de uma professora de filosofia, onde ela trazia os conceitos de “eterno feminino” e “eterno masculino”, uma visão deveras essencialista ao meu gosto. Diria até que ultrapassada, mas é inegável a existência dos estereótipos masculinos e femininos. Reprovo a ideia de “eterno”, mas confirmo a existência dessas caixinhas. Percebi mais como um vestígio de como faz falta a leitura feminista para algumas mulheres na filosofia. Nós sabemos bem que só a partir da tomada de consciência de si e de seu papel que se é possível agir e pensar de forma critica temas como esses.

Há algumas semanas que encontramos uma cascavel em meio à trilha, eu e Ana, por um triz não pisei nela sem querer. Estávamos correndo em meio ao mato, fugindo de formigas que mudavam de casa durante o período da chuva. Dei de cara com ela no meio da correria. Não conheço bem de serpentes, da sua natureza e tão pouco de seus instintos. Paramos, esperamos ela fazer sua travessia, calma e imponentemente. Nos afastamos e observamos. Estávamos tão perto da estrada e mesmo assim a encontramos. Não nego que foi aflitivo, não nego também que foi encantador.

Nós construímos a cidade para fugir de perigos como esses ou piores. Hoje, fujo da cidade, para encontrar perigos como esse ou melhores. Hoje fugimos de nós mesmos no mundo artificial que os homens criaram. Sintomático? Diria que sinto mais medo ao andar pela cidade do que ao andar pelo mato. Senti mais medo quando alguns rapazes de motocicleta passaram por nós duas quando ainda estávamos indo para a cachu, mais medo do que ao me deparar com a serpente a menos de um metro de mim.

Eu e Ana, duas mulheres encantadas pela natureza da serpente, natureza esta que simboliza, dentro dos estudos do sagrado, uma ligação entre a natureza cíclica das cobras e das mulheres. Nós mulheres guardamos em nós a grande ligação da humanidade com as forças criadoras da natureza. Mulheres me parecem exemplares da Terra, possíveis à nutrir, gerar e ao fascínio. Imaginem só a potencialidade em seres que se preparam para gerar vida todos os meses? É de uma benção poderosa saber disso, ainda mais quando todo potencial criativo de uma fêmea se volta para ela mesma, através das ideias e criações.

Por que as fêmeas se sentem tão apreensivas em meio a cidade? Pensando na palestra que citei no inicio do texto, relaciona-se muito bem em minha mente os fatores que constituem a cidade com as características da masculinidade. A quem é da área do urbanismo e se interessa pelo assunto, já está ciente de que a organização da cidade é extremamente masculina. Além de questões como a organização física, gostaria de elencar as características que mais me desagradam na cidade: o barulho dos carros, o ar impuro, a sujeira nas ruas, o asfalto que superaquece, os prédios que impedem a observação do nascer e do pôr-do-sol. Me desagrada a falta de arvores para construção de grandes centros urbanos. De forma estética e organizacional a cidade se assemelha com as características típicas do masculino, praticidade, desorganização, sujeira, barulho, falta de sensibilidade a humanidade de cada uma de nós, a violência, a rapidez abrupta, o medo. A cidade foi pensada e organizada para os homens, dos ditos bons aos mais ruins, a cidade é “viril” da forma mais prejudicial que se pode ser para o bem-estar de alguém.

A cidade é um campo de desconforto, a cidade masculina é segrega, a cidade masculina é aterroriza e perturba. Do que forra o terreno até os azulejos das paredes de seus sufocantes prédios. Palmas ainda é um paraíso pouco conhecido. Daqui alguns anos talvez, com o avançar do progresso masculino, não seja mais tão paradisíaco assim. A cidade é solidão, é desafeto, é descuidado, é o desconhecimento do outro. A cidade tal como é se materializa dentro dos ideais masculinos e só quem não o é, é capaz de percebe-la através da terrível logica que a permeia.

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Bhainá

Fêmea forjada pela socialização patriarcal, me desconhecendo para dar lugar à singular divindade que toda fêmea humana é.