Gênero como classe

Muito se fala sobre gênero atualmente, “igualdade de gênero”, “identidade de gênero”, “ideologia de gênero”, etc. Mas afinal, o que é o “gênero”?

Bhainá
6 min readJun 15, 2019

Nos estudos da filosofia sobre a condição humana se mostra evidente que, para que o sujeito seja agente ativo nos processos da sociedade, é necessário inicialmente o reconhecimento de si enquanto parte e todo. A consciência de sua própria existência e o que a condiciona socialmente. Ponto consensual quando se inicia em áreas como a política, a ética, o existencialismo e em tudo que diz respeito a análise da situação humana.

No campo da política, que é do que essencialmente estou a tratar e exemplificarei, e não excluindo áreas afetadas como é o caso da psicologia, mostrou-se necessário, partindo de estudos marxistas sobre o comportamento, a condição e a psicologia das massas, a importância daquilo advindo da teoria marxista, chamado “consciência de classe”.

O que seria de um povo sem consciência de classe? O que essa consciência implica? A consciência de classe seria, em suma, a percepção da sistematização do mundo, nesse caso, o mundo capitalista. O sistema que visando o lucro, aliena a classe trabalhadora da sua condição enquanto grupo composto essencial por seres humanos iguais. Conduzindo suas vidas, visões e expectativas para a dinâmica capitalista. Condicionando através da mídia, das instituições e da educação a lógica de mercado, de produção e de exploração. Por tanto, um povo sem consciência de classe é um povo alheio a sua própria existência no mundo, uma massa homogeneisada, manipulada para fins de terceiros. Fins estes que, em parte massiva, não os beneficiam e também não dão espaço, durante seus processos de desenvolvimento, para a construção do pensamento reflexivo. Que é o caminho para se estar apar da condição coletiva e individual, portanto: da condição humana.

E o que é o gênero? Qual a importância para as mulheres em compreenderem seu conceito? E o que isso tem haver com consciência de classe?

O feminismo nasce da tomada de consciência de que as mulheres são um grupo, uma classe. Mulheres se uniram exatamente porque algumas de nós perceberam que, apesar de nossas diferenças, nossas vidas no âmbito pessoal e público são permeadas por um tipo de lógica parecida. Há pouco tempo atrás as mulheres faziam parte de um grupo que não era permitido a participação ao voto. As mulheres no período da inquisição foram perseguidas por apresentarem comportamentos que para a ordem masculina da época eram vistos como ameaça. As fêmeas de muitas tribos pré-civilizatorias, compartilhavam de condições parecidas em relação aos homens de suas tribos, como, por exemplo, direitos sexuais e reprodutivos dominados, direito à caça e porte de ferramentas para tal, restringidos. As fêmeas de toda história sempre tiveram suas vidas ligadas por situações históricas e sociais em comum.

Foi a partir do reconhecimento de si como um grupo desprovido de direitos que a primeira onda do feminismo apareceu. Já na segunda onda feminista, se iniciou o trabalho teórico e acadêmico da condição das mulheres. Podemos citar aqui a teórica feminista Simone de Beauvoir, filosofa existencialista e marxista. Futuramente surgiram nomes como os da professora e cientista política Sheila Jeffreys, teórica e crítica de gênero contemporânea, no Brasil, a cientista social e feminista Heleieth Saffioti também se interessou nos estudos sobre gênero.

Outra autora que também se mostrou como expoente nesse debate foi a pensadora contemporânea Judith Butler. Suas contribuições geraram títulos que ganharam discussões no mundo inteiro, influenciando toda uma geração.

Partindo do campo das ciências sociais, da filosofia e da psicologia, o que a tomada de consciência das mulheres trouxe como consequências e transformações? Quais as implicações e descobertas sobre o mundo que serão reveladas? Quais os impactos na vida das mulheres a partir do momento que se vêem como parte de um grupo socialmente organizado?

Com a criação de novos gêneros e a captação por correntes liberais do que significa ser uma mulher, tornou-se mais difícil o reconhecimento das classes de gênero. Atualmente, pensadores pós-modernos, falam do conceito “mulher” como algo abstrato que não pode ser definido. Negando a sistematização que feministas da segunda onda vienham apontado a quase meio século.

A teoria pós-estruturalista, de forma bem simples, diz que os conceitos estão dispostos como parte de um todo, negando o mundo estruturado e sistematizado. Visão de mundo que vinha sendo construída e aceita nos últimos séculos, evidenciando as estruturas da sociedade, trazendo grandes contribuições para análise social e tomada de decisões dos grupos socialmente explorados.

Não dá para dizer que ser uma mulher em sociedade não significa nada, que é algo meramente subjetivo. Vejamos os dados, os dados de feminicidio, de estupro, de violência doméstica, índices de prostituição, a qual sexo a pobreza e a miséria se apresentam com mais força, etc. Veremos claramente que as fêmeas, as mulheres, são a classe explorada e dominada.

Isso seria um indício de que as mulheres são naturalmente inferiores? Creio que a maioria não aceitaria ideias como essas, eu também digo que não. Se a pobreza, a exploração e a miséria não são inerentes a condição de fêmeas, o que as tornou esse grupo em situação de desvantagem? As estruturas sociais e culturais falocêntricas e a lógica masculina que comandam o poder, atrelados a dinâmica capitalista, são responsáveis pela desumanização das fêmeas e pelo subproduto da espécie humana que eles as tornaram.

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produtos intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino.

A feminilidade é, por tanto, um produto da visão masculina sobre as fêmeas. É também um processo criado para docilizar e torna-las passíveis a dominação da classe sexual masculina.

Durante o período da inquisição, mulheres não conseguiam se sustentar sozinhas de maneira nenhuma. Além da prostituição, não tinham trabalho que lhes coubessem, seus produtos artesanais eram comprados, em media, por um preço que equivalia à um terço do valor cobrado pelos homens. A organização social masculina sempre tentou arranjar maneiras de tornar as mulheres, econômica e sexualmente, dominadas .

O surgimento do que chamamos hoje de “classe média” faz parte da tentativa de um processo de desestruturação da classe trabalhadora. Como podemos organizar a classe se ela não se enxerga mais como tal? Reconhecer que a classe média detém mais direitos que os trabalhadores precarizados, não a põe para fora da organização de classe. Continuam a ser explorados pelos mais ricos, vendem sua mão de obra, seu tempo e suas vidas, consequentemente, para um lucro que não é dividido de forma justa e igualitária. Mesmo de maneira mais branda, o que chamamos de “classe média” continua a sofrer com a dinâmica do capital.

Atualmente, no movimento feminista, a individualização do que é o gênero, transformando-o em um conceito ligado a questões de identidade individual, faz com que o movimento das mulheres perca sua principal força, o reconhecimento das fêmeas como uma classe. A romantização da mulheridade, do produto ridículo criado por e para os homens, a relativização da classe “mulher”, como algo positivo e equivalente a identidade, é de extrema prejudicialidade ao pensamento feminista.

Estavamos até pouco tempo atrás dizendo que “NÃO, não queremos ser isso que nos ditam”. Falávamos o quão opressivo e degradante é o papel destinado as fêmeas. E hoje, o movimento feminista conta com um cavalo de troia (feminismo liberal/queer) que vende a feminilidade como um produto empoderador e aberto a todos os sexos.

A análise feminista, de que o gênero é uma imposição opressiva, que nos torna através da socialização em subprodutos humanos, foi pisada e demonizada para dar espaço as políticas liberais de gênero. O reformismo chegou até ao movimento feminista. As mulheres não querem mais acabar com as categorias que as aprisionam, mas abrir espaço para que transitemos entre uma categoria e outra. Pós-estruturando e relativizando a organização patriarcal.

Particularmente, vejo o pós-estruturalismo como um devaneio burguês acadêmicista, criado por pessoas abastadas da realidade de mulheres pretas e pobres. Que por mais que a mídia e os veículos que perpetuam a organização social, tentem resignificar o principal instrumento da ordem patriarcal, que são as classes de gênero, ele continuará com sua principal função: hierarquizar e inferiorizar fêmeas (independente da sua “identidade de gênero”) em detrimento dos machos.

É necessário entender que o gênero é uma classificação imposta a todas as fêmeas com objetivo de nos tornar sexualmente e socialmente dominadas. É necessário resgatar as críticas feitas por mulheres, precisamos tomar consciência do grupo que estamos inseridas para que possamos identificar o inimigo. Sem isso, não somos nada, não temos potencial de defesa, ataque e mudança do quadro social.

Contem e conheçam a história das mulheres. Reconheçam o que fizeram conosco, potencialize sua raiva contra o poder masculino.

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Bhainá

Fêmea forjada pela socialização patriarcal, me desconhecendo para dar lugar à singular divindade que toda fêmea humana é.